sexta-feira, 5 de setembro de 2008





" MEU MUNDO É CERTAMENTE MAIS COLORIDO DO QUE O DA MAIORIA DAS PESSOAS"

Imagem: Ialê Cardoso
Palavras: Henry Matisse


A ÁRVORE DO CÉU

Ela, que esperara a noite, estava, enfim, diante dela em seu quarto. Antônia tinha esse costume. Voltava mais cedo para casa só para assistir a noite nascer em sua janela. Na pequenina cidade onde morava, no interior do Brasil, os dias eram quentes e as noites frescas. Nessa cidade, durante os dias, nas praças, meninos vendiam mangas suculentas em carrinhos de pedreiro. A noite, os jasmins cantavam seus perfumes, deixando um rastro doce pelo ar. Pois lá estava ela, em seu quarto, diante de um espetáculo que transformava o dia mole de calor em noite fresca e perfumada. Uma réstia de dia dormia embalada pelos grilos... Seu José passara de chapéu de palha do outro lado da rua. Volatava da quitanda. Uma bicicleta, um casal, uma senhora com um embrulho e uma garrafa d'água... A noite vinha. Havia uma atmosfera de tranqüilidade, típica das cidades do interior, cheias de árvores, de pessoas e pássaros ciscando nas ruas vazias.

Antônia tinha o costume de desenhar com giz de cera as constelações que apareciam no vidro da janela de seu quarto. Assim, acompanhava, noite após noite, o movimento dos astros, lentos aos olhos, mas de velocidade inimaginável, visto que cruzam os céus. Desenhava. Com uma vela acesa, que colocava vermelho no azul da noite, ela derretia a ponta de um giz de cera amarelo e encostava no vidro, no lugar em que uma estrela estava brilhando. Fazia o mesmo com o giz branco na lua, com o giz verde para Vênus, a estrela d'alva. Ao final de cada semana limpava o vidro com uma faca e começa a desenhar tudo de novo. Às vezes, ligava com linhas finas estrelas e planetas, inventava constelações. Uma parecia um gato, outra, uma xícara, uma fruta, um sorriso... E das imagens inventava histórias. Histórias que se passavam nos céus...

Como a do pássaro gigante. Depois de ligar as estrelas, viu na janela um pássaro feito com elas. Imaginou uma história onde cada planeta e estrela era um fruto brilhante. O espaço sideral era uma árvore infinita. Nela a noite doce vivia para sempre, e a luz das estrelas é que guiava todos os seres gigantes que habitavam a copa da árvore-céu. Havia entretanto um pássaro feito de uma constelação que voava e bicava os planetas como se fossem goiabas doces, ou tangerinas cheias de suco. Imaginando, riu. Talvez bicasse os planetas e deixasse cair sementes para que nascessem outros universos! Quis como nunca ser dona do pássaro que imaginara. No dia em que desenhou o grande pássaro na janela, sonhou.

Naquela noite, em seu sonho, o vidro da janela de seu quarto não tinha seus desenhos. Tinha sim o desenho de uma constelção em forma de árvove. No parapeito havia um pequenino pássaro de luz estelar. Encantada com a beleza do animal, perguntou se ele bicaria esse mundo de fruto azul, mas antes que o pássaro pudesse responder ela acordou.

Levantou-se e foi correndo para janela. Lá, diante de seus desenhos, em cima da madeira, não havia o pássaro de seu sonho. Havia uma semente. Semente essa que foi plantada em seu quintal e a ensinou, durente muitos anos, que para ser dona dos pássaros é preciso plantar árvores. Árvores da semente da liberdade. Como as árvores do céu.


Conto: Ricardo Raele
Imagem/Xilo: Ialê Cardoso